Gênesis 15.1-12, 17-18
2º Domingo na Quaresma - Ciclo da Páscoa - Ano C
P. William Felipe Zacarias
Amados irmãos, amadas irmãs,
ao ouvirmos o texto de Gênesis, precisamos agradecer que as crianças foram para o trabalho do Culto Infantil. Trata-se de uma cena cheia de horrores, de sangue e de morte. Uma cena tão marcada pelo horror que as aves de rapina voavam sobre os cadáveres ao ponto de Abrão precisar enxotá-las para longe. Imagine o cheiro desses animais mortos partidos ao meio; imagine o sangue espalhado; imagine as aves de rapina... É de embrulhar o estômago. Pensar demais nessa cena pode causar enjoo, mal-estar e até um sentimento de nojo.
Assim funcionavam as alianças no Antigo Testamento. Quando duas partes estavam prontas para fechar um acordo, geralmente eles cortavam animais ao meio e colocavam as partes ao lado para criar um caminho na qual as duas partes passavam pelo meio. Qual era o significado desse gesto simbólico? Quem quebrar o acordo poderá sofrer a mesma desgraça sofrida pelos animais cortados ao meio. Passar entre as partes cortadas dos animais significava assumir o compromisso, a seriedade e a responsabilidade pela aliança. Por isso, na linguagem hebraica não se fala em “assinar uma aliança”, mas em “cortar uma aliança” (כָּרַת בְּרִית) enfatizando o compromisso solene e absoluto firmado entre ambas as partes.
Deus prometeu que Abrão, mesmo já sendo idoso, não seria pai apenas de um filho, mas de uma grande descendência que será também uma grande nação – uma nação tão numerosa quanto as estrelas do céu na qual Abrão foi convidado por Deus a contemplar. E o que fez Abrão? “”Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça” (Gênesis 15.6). Ou seja, Abrão foi justificado pela fé dirá mais tarde o apóstolo Paulo (cf. Romanos 4.3; Gálatas 3.6) – texto que, como sabemos, fará brilhar também os olhos do reformador alemão Martinho Lutero.
Deus quer fazer uma Aliança com Abrão. E, para firmar a Aliança, pede então que ele corte os animais ao meio, exceto as aves, para que a Aliança seja estabelecida. E o que aconteceu em seguida foi algo surpreendente: “E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas; e eis um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo que passou entre aqueles pedaços. Naquele mesmo dia, fez o Senhor aliança com Abrão, dizendo: À tua descendência dei esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates.” (Gênesis 15.17-18). Perceba: Abrão não passou entre os animais cortados; apenas o Senhor Deus. Por causa dos pecados do ser humano, o compromisso, a responsabilidade e a seriedade da Aliança são assumidas unicamente pelo Senhor que decidiu assumir as consequências sobre si até às últimas consequências![1]
Amados irmãos, amadas irmãs,
isso não irá culminar em outro lugar senão no alto da cruz onde Deus assumiu as consequências da desobediência e do pecado do ser humano. Em Cristo Jesus, Deus estabeleceu a Nova Aliança através do sangue derramado pelo seu Filho Unigênito no madeiro da cruz. E não é apenas um ser humano que morreu, mas Deus morreu na cruz: Jesus Cristo, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. E no seu sangue derramado foi assumido o Novo Testamento de Deus com a humanidade pecadora: perdão, reconciliação e missão.
Agora, o pertencimento ao povo de Deus não é fundamentado no sangue que corre nas veias, mas no sangue derramado no alto da cruz! Pertencer ao povo de Deus não significa pertencer exclusivamente a um povo ou a uma nação específica e com um nome específico, mas crer em Jesus Cristo como Filho Unigênito de Deus! Ser do povo de Deus não significa ser de uma nação chamada Israel, mas pertencer ao Novo Israel que é a Igreja de Jesus. A Igreja, com todas as pessoas que creem, é a grande descendência de Abrão – tão numerosa quanto as estrelas nos céus.
Amados irmãos, amadas irmãs,
o que é o horror dos animais cortados ao meio diante do horror do Deus que morreu na cruz? Nada! O próprio apóstolo Paulo irá assumir que falar de um Deus que morre é uma loucura e um escândalo (cf. 1 Coríntios 1.18-25). E que a nossa missão é pregar o Cristo crucificado (cf. 1 Coríntios 1.23).
Deus vocacionou Abrão a sair da terra de Ur dos Caldeus para ser pai de uma grande nação tão numerosa quanto as estrelas do céu. Mal sabia Abrão que essa grande nação seria a Igreja de Jesus com todas as pessoas no mundo que creem no Filho de Deus. Da mesma forma, Deus vocaciona a Igreja hoje a continuar proclamando a salvação através do sangue de Jesus Cristo derramado na cruz. O compromisso do sacrifício foi assumido e executado por Deus para que, de graça, proclamemos salvação ao mundo perdido.
A vocação do novo povo de Deus, a Igreja de Jesus, é fazer missão, proclamar salvação e anunciar a reconciliação de Deus com o mundo. Mas, será que a Igreja está cumprindo a sua vocação? Será que estamos abertos ao anúncio do Evangelho para os de fora? Será que somos firmes em nosso testemunho cristão? Ou será que estamos fechados em nós mesmos, olhando apenas para o lado de dentro?
Quando leio esse texto de Gênesis 15.1-12, 17-18, vejo Jesus em todo o texto e como, ao longo do Antigo Testamento, Deus foi preparando o caminho para o Novo Testamento – e como Deus cumpriu tudo o que disse, palavra por palavra. Como é bom poder confiar em Deus! Portanto, é pela fé que o ser humano é justificado em Cristo Jesus. Seja assim também em nossas vidas e em nossa Comunidade – que precisa não apenas fazer missão, mas ser missão: ter a missão no seu DNA para que mais pessoas conheçam a maravilhosa Aliança que o próprio Deus estabeleceu com o ser humano pecador para o resgatar dos seus pecados. Deus nos ama – isso é tudo!
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.
[1] Redundância proposital.