Lucas 14.1, 7-14
Ciclo do Tempo Comum
P. William Felipe Zacarias
Amados irmãos, amadas irmãs,
Vamos ver um vídeo (https://www.youtube.com/shorts/S-7tPTdECSY). Estes são Rob Burrow e Kevin Sinfield. Ambos eram muito amigos quando faziam parte de uma famosa liga de rúgbi da Inglaterra – a Leeds Rhinos. Rúgbi é um como um futebol, mas jogado com as mãos em um campo de gramado. Os competidores precisam passar entre vários outros para chegar ao fim da linha no lado adversário. Portanto, os jogadores geralmente são esportistas bem durões e fortes.
Em 2019, Rob Burrow foi diagnosticado com uma doença do neurônio motor, uma doença degenerativa que aos poucos vai causando paralisia. Foi então que Kevin Sinfield iniciou uma campanha de arrecadação para ajudar seu amigo e criar uma conscientização sobre a doença. No ano de 2023, foi inaugurada na cidade de Leeds, Inglaterra, uma maratona de conscientização sobre a doença. Kevin empurrou seu amigo em uma cadeira de rodas especial pelos 42,1 Km completos. Mas a cena mais emocionante foi quando, pouco antes da linha de chegada, Kevin ajudou Rob a sair da cadeira e o carregou nos braços até o outro lado.
Essa imagem nos revela algo profundo e surpreendente: por trás da imagem dos jogadores de rúgbi como fortões, durões e brigões está algo muito mais valioso: a força da mente, o caráter, a amizade, o amor, a esperança e, principalmente, a humildade. Aqui está a grandeza da humanidade! Quando olhamos uma cena assim, o nosso coração fica aquecido, pois vemos que ainda é possível ter esperança.
Mais do que isso: ao assistir essa cena da vida real, vejo alguém que abriu mão de chegar em primeiro lugar para chegar junto com o seu amigo. Isso é o mais importante! Esse é o verdadeiro lugar de honra! O lugar onde a humildade realmente produz um tipo de exaltação que não vem de si próprio, mas dos outros. Rob Burrow faleceu em 02 de Junho de 2024. Contudo, em seus últimos anos de vida ele pôde encontrar o melhor da humanidade – e morrer com dignidade.
Amados irmãos, amadas irmãs,
eu vejo nessa cena a mensagem de Jesus. Em um mundo tão competitivo onde sempre parece ser preciso passar a frente do outro para ser alguma coisa, Jesus nos ensina que o lugar de honra pode estar mais ao fundo. Que indignidade está em se colocar à frente daquilo que não nos compete; que dignidade há quando somos convidados pelo Senhor do banquete a assumirmos a posição de honra.
Nossa sociedade tem valorizado tanto a performance que reconhecer uma fragilidade é quase um crime, um pecado imperdoável. Você precisa ser bom em tudo; você precisa ser forte o tempo todo – até quando perde um ente querido; você não pode chorar – chorar é para os fracos! Contudo, o que mais precisamos é justamente descobrir que há no mundo gente como a gente que também tem suas lutas, seus dilemas, suas crises, suas fraquezas, mas que juntos podemos chegar na linha de chegada de braços dados.
Gosto muito dos poemas de Fernando Pessoa. É o meu poeta favorito. Fernando Pessoa tem um longo poema chamado “ Poema em Linha Reta”. Algumas palavras do fim desse poema resumem bem a mensagem de hoje. Ele diz:
Toda gente que conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho.
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que a gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?[1]
Onde é que a gente no mundo? Todos querem ser perfeitos e, por buscarem a imagem da perfeição, sacrificam o seu interior para a boa aparência exterior. Todos querem ser deuses; falta gente que queira ser gente! Contudo, vejam como o nosso coração é aquecido ao ver que em meio a tanta competividade ainda pode haver humanidade, sensibilidade, amor, empatia, cuidado, carinho, afeto. “Pois todo o que se exalta será humilhado; e o que se humilha será exaltado” (Lucas 14.11).
Amados irmãos, amadas irmãs,
Jesus está falando dele mesmo nesse texto bíblico. Ele é o Deus-Filho, a Segunda Pessoa da Trindade que deixou o esplendor de sua glória para vir a esse mundo como um servo (cf. Marcos 10.45), humilhando-se a si mesmo até à morte – e morte de cruz (cf. Filipenses 2.5-8). E, por isso, por causa da sua humilhação ele foi exaltado (cf. Filipenses 2.9-11) e está assentado à direita do Pai (cf. Marcos 16.19). Deus se faz humano. Deus desce. Deus se humilha à baixeza da loucura da cruz – enquanto o ser humano quer subir e ser como um deus. Cristo deixou o primeiro lugar e assumiu o último lugar na cruz – onde ele também nos carrega em seus braços para chegarmos, por graça, à linha de chegada.
O chamado que a leitura do Evangelho faz às nossas vidas hoje é: busque ter o caráter de Cristo, vivendo com humildade, servindo uns aos outros com humanidade. Lutero dizia que nós precisamos deixar Deus ser Deus para que nós sejamos seres humanos. Portanto, vivamos a humanidade com tudo o que o mundo mais precisa hoje: humildade, sensibilidade, cuidado, solidariedade, escuta, abraços etc.
Só a humildade nos salvará. Enquanto continuarem as disputas por poder, polarização e divisões, encontraremos mais e mais sofrimento e destruição. Que essa humildade que transforma o mundo comece em nós mesmos nesta semana que está iniciando. “Onde é que a gente no mundo?”
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes, em Cristo Jesus. Amém.
[1] PESSOA, Fernando. Obra poética de Fernando Pessoa. Volume 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 322. Antônio Abujamra fez uma excelente interpretação do poema no programa Provocações: < https://youtu.be/OVYqz8qvmKg?si=rptZNZ0sPBOA77W4&t=41 >.