João 16.12-15
Domingo da Páscoa
Ciclo do Tempo Comum
P. William Felipe Zacarias
Amados irmãos, amadas irmãs,
nós vivemos a era da pós-verdade onde qualquer coisa pode ser verdade, basta você acreditar! Já não se acredita mais em verdades universais que valem para todos os tempos, eras e lugares. Já não há mais verdades sólidas e consistentes em seu conteúdo. Hoje, há apenas as verdades líquidas onde cada pessoa formula a sua verdade e isso é o suficiente. São verdades líquidas que se moldam às necessidades de cada pessoa e onde cada pessoa pode construir a sua verdade! O filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche profetizou esse momento da história ao dizer há mais de cem anos atrás que “não há fatos; só interpretações”. Ou seja: os fatos – a verdade – não importam. O que importa é a interpretação pessoal dos fatos.
De forma prática, a era da pós-verdade cria uma sociedade instável e vazia de sentido e de referências que dão propósito à existência humana. Inclusive, também a noção de “certo e errado” se torna confusa quando a verdade não é universal. Um exemplo: imagine um jogo de futebol. De repente, o bandeirinha aponta que foi impedimento. Se o jogador impedido é do meu time, então o bandeirinha está errado; se o jogador impedido é do time adversário, então o bandeirinha está correto. O fato de quem está certo ou errado não importa mais! A única coisa que importa é o time para o qual eu torço. Agora, aplica a mesma lógica à política, às ideologias humanas e à religião que você perceberá o mesmo resultado: o importante não será a verdade, mas a minha interpretação pessoal da verdade.
Hoje, a verdade é personalizada. A verdade pode ser qualquer coisa e qualquer coisa pode ser a verdade – até mesmo uma banana colada em uma parede ou um mictório com uma assinatura que, vazios de sentido e significado, tornam-se a bandeira que anuncia: qualquer coisa pode ser verdade, ainda mais em tempos de Inteligência Artificial onde já é difícil saber se fotos ou vídeos são verdadeiros ou criados por IA.
Neste cenário onde a verdade se tornou diluída, instável e personalizada, ainda faz sentido falarmos de doutrinas cristãs? Ainda faz sentido falar em dogmas da Igreja Cristã? Professar credos que resumem a nossa fé ainda fazem sentido em um tempo em que a própria fé é personalizada aos gostos pessoais para que cada pessoa creia da forma que quiser? Faz sentido falar de verdades absolutas em um mundo que só dá valor às verdades individuais?
Nós celebramos hoje o Domingo da Trindade. Neste Domingo a Igreja Cristã é convidada a refletir sobre quem é Deus, pois, sim, também Deus quer ser diluído pela era da pós-verdade e ser transformado como tudo (energia, força, poder, prosperidade), menos em ser reconhecido como ele é. Talvez nós vivemos o tempo em que mais se fala de Deus; contudo, também este pode ser o tempo em que mais se falam besteiras de Deus e em nome de Deus. Deus precisa ser tudo o que eu quero e não quem ele é! Deus ser quem ele é ofende, vai contra as minhas crenças e acaba com as minhas expectativas; portanto, Deus precisa ser quem eu quero que ele seja para que, dentro do quadrado que eu criei, ele não saia jamais. Inclusive, as estatísticas do Censo 2022 com números divulgados nesta última semana nos informa que o número de evangélicos teve um crescimento mais lento no Brasil. Porém, o que mais vemos hoje nesse país são Igrejas Evangélicas vazias de Evangelho!
Diante deste cenário, a pergunta que precisa ecoar entre nós é: o que sustenta uma fé verdadeira? São tantas vozes falando em nome de Deus... Como discernir o que realmente vem de Deus? A resposta não está na “emoção do momento”, nem nas tendências do mundo religioso, mas naquilo que a própria Igreja sempre valorizou desde o início: o que mantém a Igreja na verdade é a sã doutrina, ou seja, o ensinamento correto da Palavra de Deus.
Por isso, a Igreja cristã possui dogmas e doutrinas que resumem e alicerçam a fé comunitária na Palavra de Deus. Assim lemos conforme Atos 2.42, logo após o Pentecostes: “E perseveravam na doutrina (διδαχῇ) dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações”. Frequentemente lembramos mais facilmente da comunhão, do partir do pão e das orações; contudo, o primeiro ponto mencionado por Lucas é que os primeiros cristãos eram perseverantes no ensino dos apóstolos de Jesus. A descida do Espírito Santo não mudou a doutrina da Igreja, mas confirmou a doutrina dos apóstolos de Cristo como verdadeira. O próprio Jesus ressuscitado havia ordenado que os cristãos perseverassem em seus ensinos quando disse: “Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os (διδάσκοντες) a guardar todas as coisas que tenho ordenado a vocês. E eis que estou com vocês todos os dias até o fim dos tempos” (Mateus 28.19-20). E o apóstolo Paulo fez um alerta que parece ser mais atual do que nunca: “Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina (διδασκαλίας); pelo contrário, se rodearão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos. Eles se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2 Timóteo 4.3-4).
Amados irmãos, amadas irmãs,
precisamos da doutrina porque ela é um legado de ensinos corretos que precisam ser passados de geração em geração para que a verdadeira fé cristã não se perca em meio a fábulas, mentiras e relativizações. Nos primeiros quatro séculos, a Igreja Cristã sofreu com problemas parecidos aos nossos. Diferentes grupos procuravam adaptar a mensagem do Evangelho e a crença em Deus às suas verdades e necessidades. Então, para que a fé cristã fosse preservada e transmitida corretamente de geração em geração, a Igreja se reuniu em Concílios onde estabeleceram credos e doutrinas que são o resumo exato do conteúdo da fé. Assim, em 12 de Junho de 325 (exatos 1700 anos atrás) a Igreja Cristã se reuniu no Concílio de Nicéia para, a partir das Escrituras, formular o dogma mais importante do Cristianismo: a Doutrina da Trindade.
O Credo Apostólico é uma forma resumida de preservar e transmitir a nossa fé. Assim também o Credo Niceno-Constantinopolitano e o Credo Atanasiano que também são reconhecidos pela IECLB. Estas formulações são as bases da nossa fé e o que fazem uma pessoa ser cristã. Portanto, a verdadeira fé não depende de gostos ou sentimentos pessoais, mas da verdade resumida e formulada nos Credos da Igreja Antiga – que foram mantidos por Martinho Lutero na Reforma do Séc. XVI.
Deus é Pai, pois é o Pai de Jesus. Mesmo que não houvesse criação ou humanidade, Deus permaneceria sendo Pai por causa de Jesus. Jesus é o Filho Unigênito do Pai – o único gerado, não criado. É chamado Filho porque é Filho do Pai. E, sendo o Filho Unigênito, decidiu partilhar da paternidade do Pai conosco ao nos ensinar a orar dizendo “Pai-nosso”. O Espírito Santo é o elo entre o Pai e o Filho. “O Espírito supera a relação Eu-Tu de Pai e Filho, introduzindo o Nós”[1].
O agir de Deus é sempre um agir Trinitário onde as três Pessoas agem: o Pai é o Criador: Ele cria por meio do Filho e na força do Espírito Santo. O Filho é o Redentor: Ele foi enviado pelo Pai na plenitude dos tempos e concebido pelo Espírito Santo em Maria. O Espírito Santo é o Santificador: Ele foi prometido pelo Filho e enviado pelo Pai e pelo Filho. Na Trindade, não há uma hierarquia, mas o círculo de comunhão e amor fraternal mais puro e belo que existe. O Deus cristão é o Deus-Trindade e nenhum outro! E o Credo Atanasiano arremata dizendo: “Todo aquele que quer ser salvo, antes de tudo deve professar a fé cristã. Quem quer que não a conservar íntegra e inviolada, sem dúvida perecerá eternamente”.
Portanto, em tempos de verdades individuais, relativas e líquidas é mais que fundamental que a Igreja Cristã retorne aos seus fundamentos e, assim como as primeiras comunidades pentecostais, também “persevere na doutrina dos apóstolos”, buscando ter certeza e clareza da sua fé.
O Domingo da Trindade é um convite a chegarmos à presença de Deus com humildade, adoração e louvor. Deus se revelou, por isso o conhecemos. Deus não é o que queremos e desejamos que ele seja; Deus é quem ele é conforme ele mesmo revelou nas Escrituras Sagradas. Não é Deus quem precisa mudar; nós é que precisamos mudar. Diante de tamanho mistério apenas nos cabe a humildade, o louvor e a adoração. Perseveremos na sã doutrina. Guardemos a fé. Passemos a verdade do Evangelho de geração em geração.
Amém.
[1] WESTPHAL, Euler Renato. O Deus cristão: um estudo sobre a Teologia Trinitária de Leonardo Boff. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 108.